São Paulo em Imagens

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Chuva


Começou como começaria um ataque no filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock: Primeiro uma, discreta, a um canto. Depois, uma segunda, e uma terceira. Logo, todo o céu estava tomado pelas nuvens cinza-escuro da chuva.

Enquanto algumas pessoas buscavam acelerar seus afazeres para escapar da chuva que se anunciava, camelôs trocavam seus CDs e DVDs piratas, suas quinquilharias, por guarda-chuvas e capas. Onde, há poucos minutos, se ouvia apregoar o filme “cópia da locadora”, agora eram anunciados a sombrinha e o “casarão”, o guarda-chuva não dobrável e maior.

A agonia não se prolongou por muito tempo. Como o rufar de tambores que anuncia o início do espetáculo, o trovão não havia terminado de soar quando o céu desabou em uma verdadeira cascata.
Junto com os pingos, a correria dos pedestres. E a preocupação dos motoristas, conscientes do risco – ou certeza – de que o trânsito pararia completamente em alguns momentos.

Marquises, toldos e portas de lojas tornam-se espaços democráticos, divididos por mendigos e donas de casa, estagiários e gerentes, aposentados e desempregados. Algumas pessoas ainda aproveitam para fazer, nas lojas, uma compra por impulso, inventando a necessidade que a justifique. Quando um transeunte mais distraído ou egoísta passa pelo toldo sem desviar seu guarda-chuva, molhando os que estão ali parados, é igualmente xingado pelas vítimas, sem distinção de raça, cor, sexo ou condição social.

Espremido entre os abrigados de um toldo, observo a garota. Pouco mais que uma adolescente. Calça jeans, blusa vermelha, as sandálias plataforma nas mãos, e não nos pés.

Encharcada. Sorridente. Despreocupada. Caminhando como se estivesse a passear, quase a dançar, sob a chuva forte. Pisando propositalmente as poças de água que se formavam ao longo do piso irregular do calçadão. Aparentemente divertindo-se muito com o que faz.

Percebo-me especulando a respeito do que possa ter acontecido. Teria sido colhida pela chuva longe demais de qualquer ponto onde pudesse abrigar-se? Ou teria, apenas, ignorado a água a cair? Seria, como eu, avessa ao uso do guarda-chuva? Ou fora pega de surpresa, sem dinheiro para comprar um? Estaria tão contente, antes da chuva, que não viu grande problema em encharcar-se? Ou simplesmente a chuva lavou-lhe da mente problemas e preocupações menos importantes do que pareciam?

Nunca vou saber, não importa o quanto eu especule. Simplesmente, o que pude fazer, foi ver a garota, sempre a sorrir e a pisar nas poças de água, seguir adiante seu caminho, logo virando a esquina e sumindo de vista, aparentemente despreocupada.

E deixando para trás uma lição há tantos anos esquecida: pode ser muito divertido deixar-se encharcar e caminhar sob a chuva, a saltar nas poças de água.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Amigo Secreto

(Crônica publicada originalmente em blog interno do Banco do Brasil, em 29/12/2011)

Luis Cláudio abriu o pequeno papel e leu o nome sorteado. Um sentimento confuso, misto de alegria, decepção, um pouco de confusão… Não saberia dizer exatamente o que sentia.
Esperara sortear algum nome conhecido, seria mais fácil presentear. Sempre detestou a saída fácil dos vale-presentes. Achava-os como um sinal de pouco-caso para com o presenteado, algo como “eu paguei o seu presente, agora o problema é seu em escolhê-lo”. Mas agora, a situação não era a esperada.
Olhou novamente o pequeno pedaço de papel, mas o nome não mudou. Ana. Não sabia bem o que pensar. Aliás, pouco sabia sobre ela. Tentou repassar os fatos que conhecia.
Ana havia chegado na agência fazia coisa de três meses. Vinha do norte do país, após separar-se do marido. Reservada, pouco falava de sua vida pessoal, e nunca saia com o pessoal para as comemorações de aniversário e happy hours que algum colega eventualmente inventava. Sua pele morena, com os traços visivelmente declarando sua origem indígena chamavam a atenção, bem como sua voz rouca, com um sotaque diferente, e bastante carregado. Isto era tudo que Luis Cláudio sabia sobre ela. Nada que ajudasse a escolher-lhe um bom presente…
Além disto, havia uma outra questão: o mais gostoso do amigo secreto é a brincadeira, a troca de bilhetes antes do dia de trocar o presente. Nada mais sem-graça e fora do espírito que aquelas pessoas que simplesmente ficam quietas e, no último dia, trazem apenas um pacote, que entregam ao seu sorteado e fim. E não era, definitivamente, o que ele queria…
A abordagem escolhida foi um tanto ousada, talvez. Mas Luis Cláudio nunca foi exatamente um tímido, então não veria problemas em sustentar, na revelação, a brincadeira que estava iniciando…
. . .
Ana releu com um soriso o primeiro bilhete recebido, um galanteio delicado, escrito em um linguajar antigo, mais do que fora de moda. A assinatura combinava com o texto: D’Artagnan.
Respondeu ao galanteio mais ou menos no mesmo tom, divertindo-se em fazê-lo. E passou a aguardar ansiosa o que mais viria…
. . .
Os bilhetes se sucederam, as trocas entre os dois eram sempre mais que diárias. Ana ainda tentava ficar de olho na caixa de bilhetes, tentando perceber quem ia à mesma com tanta frequência como ela. Sem quyalquer resultado, uma vez que Luis Cláudio desdobrava-se em criatividade para que ninguém pudesse perceber suas frequentes idas à caixa.
A partir do próprio estilo do texto dos bilhetes, os galanteios e brincadeiras foram tornando-se dia a dia mais ousados. “Espada” e “mosquete” proporcionaram duplos sentidos que não foram tão rejeitados assim, contribuindo para aumentar, ainda que cuidadosamente, a ousadia de seu autor.
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Ana chegou a pensar em dar um corte quando os galanteios começaram a ousar mais. Mas, por outro lado, estava tão bom sentir-se alvo de atenções, sentir-se desejada… Mesmo que fosse apenas uma brincadeira… Optou por deixar seguirem, apenas tendo um cuidado maior nas respostas. Um pouco de trabalho extra, mas que certamente valia a pena. Isto seria importante, para que, na revelação, pudesse cortar qualquer iniciativa mais ousada, se fosse algum colega mais saidinho. Especialmente se fosse algum colega casado, pensando em alguma aventura.
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Finalmente chegou a sexta-feira da festa! Jantar à noite, em local devidamente contratado para o evento. Ana já havia passado toda a semana pensando em como se vestiria, como se arrumaria. Sua primeira festa aqui, estava preocupada. Achava que a roupa não poderia ser sóbria demais, mas também não poderia parecer “atirada”. Acabou optando por um vestido amarelo-claro, sem mangas, que lhe realçava a cor da pele. Na sua visão, um meio-termo entre a ousadia e o formalismo.
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Ao ver Ana entrar na festa, pela primeira vez desde que começou com a brincadeira, Luis Cláudio sentiu um arrepio de nervosismo a percorrer-lhe a espinha. Achou-a mais linda que nunca. Será que não teria ido longe demais com a brincadeira? Qualquer passo em falso, qualquer palavra que ela não gostasse, e poderia ser grande a chance de ele virar o palhaço da festa…
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À medida que o amigo secreto prosseguia, Ana ficava apreensiva. Os palpites que imaginara estavam  todos se esgotando. Por sugestão de algum colega, a brincadeira fora invertida. Cada pessoa tinha três tentativas de adivinhar quem a sorteou, se não acertasse, pagaria o mico de dançar “Conga, Conga, Conga”. Ela já se preparava psicológicamente para a dança.
O sorteado por Ana não acertou seu nome e, após o pagamento do castigo, ela avançou e entregou-lhe o presente. Era agora…
Passou os olhos pelos presentes. Mais da metade já havia sido revelada, o que poderia facilitar as coisas. Havia mais homens que mulheres na brincadeira, então ela poderia eliminar todas as mulheres que faltavam. Os homens que faltavam eram, como ela temia, todos casados, exceto…
- Luis Cláudio!
O assombro, apesar de generalizado, foi muito mais visível na expressão de seu amigo secreto. Luis Cláudio avançou para o ponto onde ela estava, entregando-lhe o presente. Discretamente, durante o beijo de praxe, perguntou a Ana:
- Como descobriu?
Ana limitou-se a sorrir e afastar-se dele, mantendo a curiosidade, por enquanto… Luis Cláudio procurou rapidamente seguir adiante com a brincadeira, mas acabou também tendo de pagar a dança, para seu desespero. Tão logo se livrou, correu até onde Ana estava, e repetiu a pergunta:
- Como?
- Simples! Olhei para quem faltava e, entre eles, escolhi quem eu esperava que fosse. Dei sorte!
- Sorte dei eu, em tirar você! Espero que não tenha sido muito ofensivo na minha brincadeira…
Ana riu:
- Um pouco, sim. No começo, cheguei a pensar em reclamar, mas deixei para lá, afinal não era nada assim tão grave, e somos todos adultos…
A conversa continuou. Desde que começaram a trabalhar juntos, era a primeira vez, de fato, que poderiam saber um pouco mais um do outro. Descartar ideias pré-concebidas, da maneira que apenas conversando se pode descartar. Quando foi servido o jantar, procuraram sentar-se juntos, e continuar o assunto.
Ao final da noite, Luis Cláudio acompanhou-a até o carro dela. Despediram-se, ainda um beijo no rosto, mas um abraço um pouco mais demorado.
E a certeza de que o melhor presente de amigo secreto que ambos haviam ganho não era o objeto em suas mãos…

Rotina

(Crônica originalmente publicada em blog interno do Banco do Brasil em 25/10/2011)

Sem abrir os olhos, estica o braço para o celular, tateia e aperta o botão que lhe daria mais 10 minutos de sono. Antes, porém, que volte a tocar, levanta-se, para iniciar o cumprimento da rotina diária.
Banho tomado, dentes e cabelos escovados, a roupa separada cuidadosamente na véspera vestida, e ganha a rua, comendo um pedaço de pão. Se fosse parar para tomar café, perderia o ônibus.
Mal chega ao ponto, já lotado, começa a chuva. Tenta abrigar-se de algum modo na porta do bar, maldizendo o dinheiro gasto na escova perdida. A roupa, escolhida e preparada com tanto cuidado, que se molhou toda, acaba de ficar estragada quando chega o ônibus e a multidão se aglomera, tentando todos entrar sem fechar seus guarda-chuvas, numa clara tentativa de desafiar a lei física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, ao mesmo tempo.
Vai sendo conduzida, pela pressão do movimento das pessoas, até o ponto crucial em que seria obrigada a passar a catraca, para não ser esmagada, mas ao mesmo tempo é impossível girá-la, tamanha a quantidade de pessoas que já se espreme do outro lado.
Quarenta e cinco longos minutos depois, o ônibus chega à estação do metrô. Ela quase não precisa fazer esforço para seguir o caminho, tão compacta está a multidão que deixa o coletivo. Lembra-se de uma propaganda de goma de mascar, e quase deseja que fosse, mesmo, possível simplesmente levantar os pés e se deixar levar, como a propaganda mostrava. No caminho para o embarque, na estação, a situação melhora um pouco. Ao menos todos estão um pouco mais espaçados, pode respirar enquanto anda. Na plataforma, precisa esperar o quarto trem que passa, para conseguir embarcar, tão espremida como no ônibus.
Finalmente chega ao trabalho. Corre a vestir o uniforme, está quase na hora da loja abrir, e pobre dela se não estiver a postos e sorridente quando isto acontecer. Ainda que o sorriso não vá durar muito tempo…
O movimento do dia está mais fraco que o normal. É fim de mês, todo mundo sem dinheiro e, para piorar, a chuva. Mesmo os corredores do shopping estão vazios. Sabe que o dia custará a passar. Dia parado é assim, duplamente ruim. Além de demorado, não rende muita coisa em vendas, vai ter de se desdobrar em outros dias para cumprir a quota.
A manhã termina de se arrastar. Pega a marmita na bolsa e vai para o refeitório do Shopping, para o almoço cujo cardápio nunca varia.
A manhã parada foi ruim por mais um motivo: enquanto organizava as roupas nas prateleiras da loja, teve tempo de pensar. E de lembrar-se.
Fazia tempo que o namoro com o Eduardo terminou. Ele seguiu a vida dele, ela não consegue seguir adiante com a dela. Algumas ficadas, quando consegue ir a uma balada, nada sério. Por muito tempo, chegou a esperar que ele voltasse. Mas nunca voltou.
Uma pequena caminhada, depois de comer, pelos corredores do shopping. A melhor opção para completar sua hora, se voltasse à loja, teria de voltar a trabalhar imediatamente, não valeria a pena. Gosta quando encontra alguma colega, para caminharem juntas. Não foi o caso, hoje. Mas parece ser sempre assim, dia que começa ruim, acaba pior.
Durante a tarde, ao menos consegue vender um pouco mais. Não é o melhor dos dias, mas ao menos não vai ficar tanto prejuízo para correr atrás nos últimos dias do mês. Até compensou ficar um pouquinho depois do horário, a última venda que fez, até que foi bastante boa.
E agora começa a pior hora do dia, a volta para casa. Se pela manhã parecia impossível ônibus e metrô mais cheios do que os que ela enfrentou, na volta o impossível se desmente.
Sempre pensa que seria bom conseguir um emprego mais perto de casa, mas sabe que as opções que teria não são das melhores. E conseguir morar mais perto do trabalho, não tem jeito. Então, se não tem como resolver, o negócio é aceitar…
Chega em casa, mais exausta da volta que do dia trabalhado. Banho, jantar, assistindo à novela, um pouco de conversa com a mãe, que sempre quer saber das novidades que não existem. Prepara a marmita para o dia seguinte, arroz, bife, ovo e verdura. O truque é não colocar feijão, para não azedar. Checa, mais uma vez, a hora de levantar-se, no celular, e vai dormir.
Amanhã, vai começar tudo de novo. A mesma rotina. Os mesmos passos.
Mas quem sabe aparece a chance de conversar com aquele rapaz novo e bonitinho da loja de sapatos?

Paralelas

(Texto publicado originalmente em blog interno do Banco do Brasil)

Ela acordou cedo, ou nem dormiu, na verdade. Já fazia um mês que o namorado terminara com ela, e todas as noites eram a mesma coisa, um alternar interminável entre sono aos sobressaltos e estar acordada, chorando.
Levantou-se, sabendo que estar na cama não a ajudaria em nada. Ao contrário, o melhor a fazer seria ajudar sua mãe com os afazeres para aquele dia, concluindo logo suas tarefas, antes do horário combinado com a amiga. Era o dia do aniversário da cidade, havia uma extensa programação comemorativa, e as duas haviam combinado há dias que iriam participar.
“Vai ser bom”, ela tentava convencer-se, “ao menos vai ser tanta coisa a fazer que nem vou me lembrar do Renato”.
A amiga chega por volta das 11horas. Saem imediatamente, uma longa viagem de ônibus até o centro da cidade. E, com o feriado, é muita sorte se o ônibus demorar menos de uma hora a passar...
Ele acordou tarde. Havia acordado antes, olhou o dia nublado pela janela e voltou a dormir. Era feriado, não precisava acordar cedo, afinal de contas. Pretendia participar da programação de aniversário da cidade, mas não tinha pressa alguma.
Levantou-se por volta do meio-dia. Toma um banho sem pressa e sai caminhando, em direção ao evento mais próximo.
Ela esperava um show melhor. Para tentar animar-se, divide com a amiga uma garrafa de vinho barato, comprado do ambulante a um preço que, definitivamente, não valia.
O show está animado, mas ele não compreende a razão de ter sido contratada uma banda de fora da cidade, com tantas bandas locais disponíveis.
Enquanto ele ouve as músicas, passeia pelo local. Apesar de tantos anos vivendo na cidade, esta é a primeira vez que consegue ir a um evento deste tipo.
Enquanto ouve as músicas, ela e a amiga dançam, pulam e bebem. Tudo é válido, para esquecer a dor que sente.
Terminado o show, ele dirige-se a um pequeno restaurante próximo, para uma refeição simples, mas que seja diferente de sua comida de todos os dias. Ela busca uma das muitas barracas que há no local, vendendo cachorros-quentes e outros lanches, para comer algo.
Depois da refeição, percebendo a chuva que se aproxima, ele volta para casa, sem pressa em assistir o show que vai começar no final da tarde. Ela e a amiga tentam o abrigo de uma marquise, mas a quantidade de pessoas que teve a mesma ideia não lhes permite grande sucesso.
As duas dividem mais uma garrafa de vinho para se esquentarem. E depois outra, para se alegrarem, ou comemorarem, ou esquecerem, o motivo já não mais importa. Enquanto elas bebem, ele dorme.
Começa o show, e dançando, em meio à aglomeração popular, elas nem se lembram mais do tanto que se molharam. E, em breve, as próprias roupas já estão bastante secas.
Por alguns instantes, ele questiona-se a respeito de sair novamente de casa. Acaba se convencendo de que ir é melhor que suportar o opressor sentimento de solidão que preenche todo o local.
Ela e a amiga afastam-se um pouco do palco principal e da agitação que o cerca, optando por acompanharem o show pelo telão. A imagem é ruim, mas não faz muita diferença, pois o que menos interessa é ver o que acontece no palco. O momento é para beber, dançar e esquecer.
Ele, ao contrário, prefere aproximar-se do palco, encantado pela novidade. Tantos anos, tantos shows que já perdera, constata agora um ambiente muito mais tranquilo do que sempre ouvira falar.
Não falta muito tempo para o final previsto do show, ele decide afastar-se do palco, de modo a ter menos problemas quando for para sair.
É neste momento que as paralelas se encontram.
Basta uma breve fração de segundo. Ela dança, ele caminha. Os olhos dos dois se conectam. No palco, a música que se transformou no hino extraoficial da cidade. Não é preciso usar palavras. Ele estende a mão, ela a segura. Ele a puxa para si. Abraçados, dançam, esquecendo-se de tudo e de todos. Trocam algumas palavras, ele pergunta o nome dela. “DÉni”, ela responde, forçando um falso sotaque inglês. Não pergunta o nome dele, nem ele diz.
A música termina, e também a dança. Um breve beijo no rosto, “obrigado por estes momentos”.
E as paralelas voltam a se desencontrar.